terça-feira, julho 17, 2007

O mínimo é o máximo

Tenho que admitir que ultimamente tenho buscado fugir do caos, em todos os momentos. Procuro me deter naquilo que realmente me interessa, me instiga (o que é muito pouco comparado à infinitude do que é oferecido), sem querer absorver o máximo de informação possível (ou impossível). E quando meus olhos batem em algo que os fixa, procuro dar o tempo necessário, merecido, para que seja armazenado por completo.

Há poucos dias li no Canal Contemporâneo um texto do Agnaldo Farias sobre a obra do artista plástico João Modé. E só de ler sobre sua obra, me apaixonei. Agnaldo descreve e analisa a criação de Modé seduzindo o leitor. Perdi a noção do tempo, senti que estava completamente imersa naquele mundo criado pelo artista e apresentado pelo crítico. Percebi que há tempos um texto não me prendia assim, e que uma obra provocasse tanta curiosidade. Por esta razão, divido com vocês a minha satisfação...
João Modé

AGNALDO FARIAS

Há uma ordem quase imperceptível que rege coisas e acontecimentos díspares. Um enredo que se dá sob a forma de eventos discretos e interligados como o tilintar incessante das garrafas do caminhão de bebidas em sua rota noturna, lembra? A lista é infinita, a começar pela marcha imperturbável das formigas dentro de casa, a parede que se descasca revelando que por debaixo há ainda uma outra casca e mais outra e outra ainda, as nuvens de pó que vagam pelo chão dos ambientes, o cheiro dos jasmins do cabo, o nanquim dos cafezinhos tomados pela metade e que contrasta com a pele lisa e láctea das xicrinhas de porcelana... Fenômenos efêmeros, afeitos a invisibilidade. Serão, talvez, acontecimentos erráticos, mas se assim nos parece é porque também não nos damos conta da freqüência com que se dão. O mesmo acontece quando os designamos “misteriosos”, essa palavra genérica com a qual os enviamos para a sombra.

O problema é que sabemos pouco ou nada das coisas. Elas não nos contam seus segredos. O máximo a que se permitem, ou que logramos alcançar, é a emissão de vagos sussurros, balbucios indistintos dos quais, em nossa ânsia de apaziguamento, pensamos extrair algum sentido. O que mais há, aquilo que efetivamente conseguimos reter delas, são suas superfícies, o modo entre caótico e lacônico com que refletem ou sorvem a luz. Afora isso só nos resta quedar à tona das coisas observando-as atentamente. É esse o procedimento de João Modé, o que sua obra tem a nos ensinar. O mundo fecha-se em sua preguiça; como já disse um escritor português a propósito de livros: o mundo é uma máquina que só se põe em movimento pelo leitor/observador. Um observador ativo, já se vê, que movimenta a máquina ao passo em que se movimenta pelos trilhos da linguagem. Modé é um observador que produz obras produtoras de novos observadores. Nestes tem pos em que a sensibilidade anda ofuscada, Modé propõe o exercício de uma nova sensibilidade, situada no umbral do invisível, que acontece a partir de pequenos acontecimentos, pela celebração de encontros inesperados; situações que ele propicia, fabrica ou simplesmente apresenta à nossa atenção.

Como esses cães que o artista registrou através da janela do carro em que viajava com seu amigo, Helmut Batista, pelas estradas sinuosas e desabitadas que cortam as montanhas e atmosfera rarefeita do Peru. Transpostas e editadas num filme em preto e branco de curta duração, as imagens, feitas com o carro em movimento, acompanham o movimento de cachorros solitários, vagando às margens das estradas.

Peregrinos sem rumo aparente, dado que em nenhum dos casos havia algo junto a eles, ou nas imediações, pessoa, casa ou vilarejo, outros animais, um rebanho qualquer que justificasse suas presenças, que lhes servissem de amparo. No entanto eles seguiam só, Solos, palmilhando pelas bordas da faixa escura de asfalto, ou próxima a ela, uma forma de evitar o fluxo fluvial e espaçado dos carros, invisíveis a maior parte do tempo. Os cães variavam entre a faixa e o solo pedregoso, tornado ainda mais inóspito pela extensão , pelo modo como se esparrama em planuras de horizontes longínquos, e mais ainda quando, abruptamente, empina-se em escarpas íngremes cujos cumes rilham os céus. A câmera foi colhendo os cães sem que soubesse de onde vieram e para onde iam, efeito ampliado pela alternância calculada entre o fade-in e fade-out, um modo que o artista encontrou de retirá-los da escuridão para onde os devolvia em seguida. (...) Continuação do texto aqui.